Associação da Rede Unida, Encontro Sudeste 2019

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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Mães Órfãs: produzindo novos olhares a partir de modos de existência e resistência singulares
Mônica Garcia Pontes, Alzira de Oliveira Jorge, Luciana de Souza Braga

Última alteração: 2019-10-24

Resumo


Mães Órfãs: produzindo novos olhares a partir de modos de existência e resistência singulares

Orphaned Mothers: producing new views from singular modes of existence and resistance

Madres huérfanas: produciendo nuevas miradas desde modos singulares de existência y resistencia

Palavras chaves: Política Pública; Vulnerabilidade Social; Maternidade

Este estudo compõe parte de uma investigação efetuada pela frente Mães Órfãs do Observatório de Políticas e Cuidado em Saúde da UFMG. Pretendeu-se dar visibilidade às intensidades que marcaram as vidas de mães, filhos e trabalhadores que vivenciaram a perda compulsória de filhos de mulheres em situação de vulnerabilidade na região metropolitana de Belo Horizonte (BH). Entre os anos de 2014 e 2016 foi normatizada na capital mineira a separação compulsória dessas mães e seus bebês. Ocorreu, então, um aumento no número de bebês sendo encaminhados diretamente das maternidades para abrigos e, em contrapartida, foram sendo fortalecidos movimentos sociais de resistência à situação. Nesse contexto, o enlace entre o exercício de poder, a produção do saber e aplicação de dispositivos que operam nas vidas das pessoas estimulou a elaboração dessa pesquisa.

O percurso metodológico envolveu: i. a produção de narrativas de mães, trabalhadoras e familiares envolvidos com a situação de separação de mães e filhos; ii. entrevistas em profundidade com trabalhadores e gestores do SUS, SUAS, Defensoria Pública e Universidade, além de representantes de Conselhos e movimentos sociais envolvidos com a situação; iii. análise de documentos tais como normativas e atas de reuniões; iv.  vivências de encontros como seminários e reuniões que versaram sobre o tema de estudo. Duas Recomendações (nºs 05 e 06/2014 do Ministério Público de MG) e a Portaria nº 03/2016 da Vara da Infância em Belo Horizonte, relacionadas às medidas de separação compulsória de mães e bebês, constituíram-se em núcleos de análise importantes nessa pesquisa.

Durante a investigação foram identificados atores que, de alguma forma, envolveram com a situação de segregação e valores defendidos por estes, bem como campos de disputa e efeitos das separações a partir de diferentes perspectivas. Produziu-se também uma compreensão acerca do cuidado ofertado às gestantes.

Reflexões produzidas a partir do contato com as diferentes fontes consideradas permitiram reconher diferentes movimentos. Um deles, comprometido com as forças hegemônicas de mundo, caracteriza-se por defender arranjos sociais conservadores que justificariam a separação de mães e filhos. Nesse contexto, a condição de vida nas ruas ou um lar precário, a pobreza, o racismo, a defesa de uma concepção tradicional de família, a salvação da criança, o suposto aumento da probabilidade de crianças crescerem convivendo com drogas, bem como a não efetivação de uma rede de cuidado fundamentaram essa perspectiva. Vão sendo, então, elaboradas estratégias - como o excesso de burocracia, prazos  insuficientes para levantar possibilidades de recém-nascidos ficarem com suas famílias biológicas, a implementação de um questionário para a mulher admitir uso de entorpecentes, a responsabilização individual de profissionais, além de descrições estáticas de momentos de fragilidade para promover criminalização das famílias - para dificultar a viabilidade de mães e filhos ficarem juntos.

Contudo, movimentos contrários à separação, conduzidos por um posicionamento ético-político comprometido com a vida de todos e com uma busca por saberes implicados com a complexidade da sociedade, constituíram-se em resistências que ganharam densidade em BH. Mobilizações de gestores, trabalhadores, movimentos sociais como “De Quem é Esse Bebê”, Conselhos de usuários e categorias profissionais, representantes da Universidade, especialmente UFMG, com a Clínica de Direitos Humanos, o Programa Pólos de Cidadania da UFMG e o Observatório de Políticas e Cuidado em Saúde contribuíram, inclusive, para a suspensão da normativa de incentivo à separação (Portaria nº03/2016 da VCIJBH).

As singularidades das vidas das mulheres, bem como a sensibilidade de gestores e trabalhadores que lidam com a questão, contribuíram para apontar caminhos possíveis para enfrentar a situação. Nesse âmbito, foi possível identificar também movimentos de produção de redes e de cuidado em saúde associados a perspectiva de diálogos despidos de verdades institucionais, compromisso com o usuário em detrimento de um cumprimento legal estrito, investimento em um judiciário comprometido com o papel de defesa e não criminalização da população, interação dos sujeitos além das esferas institucionais, bem como fortalecimento do SUS. Nesse processo, foram apontados como essenciais a integralidade da atenção, o desenvolvimento de olhares atentos às singularidades dos casos, a autonomia dos usuários e produção ativa desses no cuidado e na invenção de formas de viver.

Vale destacar as inquietações, gestos, estratégias de sobrevivência e a produção de novos territórios sensíveis por parte de diferentes atores se constituindo como traços de resistência a tentativas de controle sobre as vidas das pessoas. Perceber esses vazamentos inclui a produção de um olhar sensível ao outro.

Os diálogos permitiram identificar algumas pistas acerca da complexidade que envolve a situação de separação compulsória. Nesse  sentido, destaca-se: o reconhecimento de interesses  diversos influenciando a implementação de políticas públicas; a necessidade de incluir os companheiros em ações dirigidas às mães; a presença de práticas de alienação parental tanto em âmbito familiar quanto por parte do Estado; a sugestão  de que a separação de mães e filhos envolve o atendimento à uma razão de mundo que tenta homogeneizar a vida; a identificação de ações de representantes do Estado que fogem aos atributos de controle da população; o papel fundamental do Consultório de Rua e a potência da estratégia de redução de danos no cuidado às mães e bebês; a importância do trabalho com a presença de sistemas coletivos de proteção social; a potência da subjetividade humana diante do arbítrio; a força do reconhecimento do outro enquanto sujeito válido; a produção de redes vivas e férteis de novos sentidos para as vidas de mães, filhos, famílias, trabalhadores para a superação de vulnerabilidades. Abordar a situação de separação compulsória envolveu, dessa forma, debruçar-se sobre um intrincado processo de desresponsabilização social, no qual há omissão pública, uma visão imediatista dos acontecimentos, escassez de afetos diante das diferenças e desvalorização de determinadas formas de vida.

Determinada leitura de mundo aprisiona a maternidade a um formato único, dado a priori e indiferente às singularidades que existem em nós e nos territórios que impulsionam sociabilidades. Nessa trilha, o silêncio de alguns sugeriu que disputas e sentimentos de exaustão conviveram com pontos de criação e com embriões de possibilidades coletivas.

Conexões entre a utilização de instituições como Maternidades, Ministério Público e Vara da Infância para separar mães e filhos sob pretextos de drogadição, pobreza extrema ou incapacidade de criar indicaram que as separações correspondem a uma estratégia de governo que, ao penetrar nas mais intensas relações humanas, pretende reforçar uma razão de mundo. Tal mecanismo de segregação constitui um recorte de uma prática que repousa sobre a violência contra aqueles que se apresentam menos regulados pela razão hegemônica.

Entretanto, muitas vezes essas situações não são visíveis aos nossos registros valorativos. Diluem-se nas histórias cotidianas da vida e não nos impressiona. São concebidos como pontos de passagem que penetram o cotidiano sem ganhar espaço, sem afetar nossa memória. As legislações descritas neste exercício apenas legitimam nossas ideias fantasiosas das pessoas. Busca-se um apagamento dos múltiplos sentidos que a maternidade e a paternidade podem ter para o ser humano.

Contudo, a formação de coletivos suscitados pela gravidade da situação em BH conduziram a um combate à indiferença e ao desrespeito aos diversos modos de viver. Dessa forma, investir em diálogos acerca da situação vivenciada por essas mães nos diversos serviços e espaços legislativos constitui conquista cotidiana que potencializa a produção de aparatos políticos que possam redesenhar ações de proteção para essas mulheres e seus filhos.

Nesse contexto, a subjetividade é apresentada como uma força política. Tanto as manobras de defesa de mães e filhos ficarem juntos quanto as concepções contrárias constituem formas de poder e de saber potentes no que tange às interferências que provocaram sobre as vidas das mães, filhos e também dos trabalhadores e gestores envolvidos com a situação. Nem o Judiciário, nem o setor saúde conseguem abranger a dimensão que circunscreve essa situação. Assim, novas leituras dos acontecimentos nas vidas de mulheres separadas compulsoriamente de seus filhos tornam-se necessárias para ampliar possibilidades de superar as fraturas nas ofertas de cuidado, desenvolver alternativas de assistência mútua e minimizar as desigualdades sociais que envolvem essa situação.

Cabe destacar que a impossibilidade de apreender a existência dos sujeitos não nos exime do compromisso de tentar impedir as rupturas desastrosas provocadas pela separação compulsória de mães e filhos. Nesse contexto, as redes de encontros, ao provocar inquietudes, favoreceram a ousadia, aproximações latentes e a ampliação dos limites de ação. Nesse cenário, a articulação de políticas públicas desponta como mecanismo que pode potencializar a produção de maternidades seguras e plenas.

Em essência, buscar uma compreensão das possibilidades de vida e de cuidado para essas famílias envolve abrir-se para o inusitado das sensibildiades e mobilizar a produção territórios comprometidos com os diversos modos de viver e com as possibilidades de existir e resistir diante das adversidades.