Associação da Rede Unida, Encontro Sudeste 2019

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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Relação entre natureza e o discurso da humanização do parto
Priscila Kiselar Mortelaro

Última alteração: 2019-10-30

Resumo


Relação entre natureza e o discurso da humanização do parto

Relationship between nature and the discourse of humanization of birth

Relación entre naturaleza y el discurso de la humanización del parto

Priscila Kiselar Mortelaro

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

priscilamortelaro@gmail.com

Palavras-chave: natureza; parto humanizado; práticas discursivas

A pesquisa relatada aqui surge de uma inquietação que emerge da experiência de inserção desta pesquisadora no campo de prática e debate no âmbito do que chamamos movimentos de humanização do parto, como obstetriz. Ouvindo desde experiências de mulheres que passaram pelo processo de parturição a relatos de parteiras/obstetrizes, sempre me atentei às narrativas que relatam as tensões entre os corpos que “naturalmente sabem parir” e a necessidade de intervenções e do uso de tecnologias.

As mulheres que planejam um parto natural e humanizado e necessitam de algum tipo de intervenção revelam-se, com certa frequência, frustradas com seus próprios corpos, culpadas pelos desfechos indesejados que, na verdade, encontram suas origens em um complexo processo de construção histórica no qual está em questão os limites entre natureza e cultura, por meio do qual os modos de compreender e vivenciar o parto são construídos e reconstruídos. Passar por esse tipo de experiência requer que essas mulheres lidem com as ambivalências dessa noção de natureza inscrita no discurso em questão.

Nesse contexto, escolhi deixar que essa experiência norteasse os caminhos iniciais dessa pesquisa, tendo em vista que, mesmo havendo na ciência tradicional uma pretensão de objetividade associada à neutralidade de um/a pesquisador/a abstrato/a, o conhecimento é sempre, conforme Donna Haraway (1995), situado, corporificado e, portanto, produzido a partir de um ponto de vista finito. Essa postura contribuiu para a decisão de voltar-me ao problema dos discursos que universalizam o corpo – sobre os quais já nos alertou Adrienne Rich (2002) – e pensar o problema em questão olhando para cada corpo concreto com uma experiência de desfecho indesejado, a fim de compreender os efeitos do uso da natureza como recurso discursivo.

Reconhecendo os efeitos de normalização na experiência feminina desses discursos, o objetivo geral desta pesquisa ainda em andamento é compreender qual é a relação que se estabelece entre natureza e o discurso do parto humanizado, buscando compreender seus possíveis efeitos, partindo da experiência de mulheres que planejaram um parto natural e necessitaram de intervenções para a condução do processo.

Segundo Carmen Tornquist (2002), um movimento pela humanização do parto teria surgido, no contexto brasileiro, na década de 1980. Muitas vezes em aliança íntima com a medicina baseada em evidências, conforme destaca Simone Diniz (2005) as/os ativistas ressignificam o processo de parturição e, consequentemente, as práticas em relação a ele se transformam: de evento fundamentalmente patológico e temido, o parto passa a inspirar uma nova estética, na qual estão permitidos os elementos anteriormente indesejáveis, tornando-se uma experiência de corpos que sentem, expressam e se relacionam.

Apesar de não haver um consenso acerca de uma definição exata e específica do movimento pela humanização do parto, Diniz (2005) destaca que a crítica ao modelo tecnocrático é um de seus eixos discursivos centrais. Ao incentivar práticas que se adequem à fisiologia, o movimento também traz ao cenário da assistência o conceito da preservação do processo natural do parto. Junto ao elemento de crítica à medicalização da saúde, segundo Tornquist (2002), destaca-se a valorização da natureza como outro elemento fundamental no discurso do movimento, postulando, no limite, o retorno a uma vida mais natural.

Entretanto, uma vez reconhecida sua importância, sugerimos que não devem passar sem críticas os paradoxos deste discurso e os possíveis efeitos de normalização e controle da experiência feminina que a centralidade da natureza pode trazer, caso não haja reflexão acerca dos sentidos que a noção de natureza assume ao inscrever-se no ativismo pela humanização do parto. Conforme destaca Tornquist (2002), o surgimento de uma “pedagogia do parto”, que teria como objetivo ensinar as mulheres a recuperarem seu “instinto perdido”, ilustra o caráter paradoxal dessa relação, na qual entrar em contato com a própria natureza acaba por se impor como um dever à mulher moderna que escolhe dar à luz e ser dona de seu próprio corpo. Ironicamente, a mulher que é dona de seu próprio corpo deve seguir prescrições que a levarão ao seu “empoderamento”, entendido como forma de retorno à suposta natureza feminina. Ainda, segundo a autora, a valorização da diversidade cultural institui-se como base da busca à volta da maneira natural de parir, no entanto, a mesma estratégia remete a um instinto universal feminino, reforçando uma concepção do ser humano “fora da história e liberto da cultura” (TORNQUIST, 2002, p. 488). Neste contexto, o movimento de humanização traz uma noção de natureza feminina à qual seria inato o instinto sexual, reprodutivo e maternal. O empoderamento feminino nesse contexto significa, conforme Tornquist (2002), o resgate dos poderes e saberes inerentes à natureza feminina que se perderam no processo civilizatório.

Nessa mesma linha, Elizabeth Badinter (2011) destaca que a crescente necessidade de afirmar o parto como um fenômeno natural se inscreve no âmbito dos discursos que criticam o modelo cultural predominante e pregam uma volta à natureza; entre eles principalmente o discurso da ecologia, das ciências do comportamento – que se fundamentam na etologia – e de um novo feminismo essencialista. Segundo a autora, o naturalismo pode cumprir a função de assujeitar as mulheres por meio de discursos que, mesmo imbuídos de uma pretensão libertária, também disciplinam e regulam, por meio da imposição de um processo que exige uma responsabilização moral e ecológica das mulheres, não só acerca de sua própria saúde, mas também acerca dos cuidados com seus filhos. Nesse sentido, essa “ofensiva naturalista” pode estar sendo fonte de imposição de deveres consigo mesma e, principalmente, de deveres maternos cada vez mais sérios.

Entretanto, ressaltamos que não se trata de condenar tão prontamente a inscrição da natureza no movimento de humanização. Como bem lembra Tornquist (2002), se a centralidade da natureza aponta para a valorização de uma suposta essência feminina, implicando uma feminilidade e um instinto maternal como elementos dessa estética do parto, ela pode, por outro lado, dar positividade ao corpo e à experiência de dar à luz, contrapondo-se a uma obstetrícia ocidental cuja tradição desvaloriza o corpo feminino. Conforme pudemos observar, os sentidos que a experiência do parto assume nessa nova estética permitem que mulheres cujos corpos não são mais patologizados, controlados e medicalizados assumam a centralidade no processo de parturição. Desse modo, entendemos que a natureza pode ser um recurso para repensar o uso da tecnologia, apontando para outros modos de compreensão e ação no mundo, uma vez que faz um contraponto à racionalidade masculinista que se expressa nos esforços de dominação da natureza, e, por fim, na medicalização do parto e do corpo feminino. Logo, buscaremos, com essa pesquisa compreender o que pode nos dizer essa tentativa de resgate da natureza no âmbito da humanização do parto, ou seja, que tipo de relação se estabelece entre um e outro, para que se possa, eventualmente, ressignificá-la, a fim de que não se coloque como mais um dispositivo de normalização e controle.

Nesse contexto, concluímos que o discurso que se inscreve nos movimentos pela humanização do parto e do nascimento se apresentam como uma forma de resistência possível no campo estratégico das relações de poder, gradativamente transformando as práticas com relação ao parto e, principalmente, reconfigurando a relação que as mulheres estabelecem com o parto e com seus próprios corpos, uma vez que, nesse voltar-se à natureza produzem-se determinados modos de ser mulher. Exatamente por isso propomos uma investigação cuidadosa do discurso de humanização, com atenção especial à relação que estabelece com a natureza e aos sentidos que essa noção pode assumir. Para cumprir nossos objetivos, nos localizamos no campo da psicologia social, assumindo uma perspectiva teórica que nos fornece elementos para a compreensão da linguagem como elemento capaz de afetar a construção da realidade (Mary Jane SPINK, 2010) a fim de que possamos conhecer os efeitos concretos desta relação estabelecida no âmbito do discurso na vida das mulheres, podendo inclusive contribuir para sua ressignificação e transformação.

 

BADINTER. Elizabeth. O conflito: a mulher e a mãe. 1 ed. Rio de Janeiro: Record, 2011.

DINIZ, Carmen Simone G. Humanização da assistência ao parto no Brasil: os muitos sentidos de um movimento. Ciência & Saúde Coletiva, v. 10, n. 3, 2005.

HARAWAY, Donna. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu, Campinas, n. 5, 1995.

RICH, Adrienne. Notas para uma política de localização. In: MACEDO, Ana Gabriela (Org.). Género, identidade e desejo: antologia crítica do feminismo contemporâneo. Lisboa: Edições Cotivia, 2002.

SPINK, Mary Jane P. Linguagem e produção de sentidos no cotidiano. Rio de Janeiro: Centro Edelstein, 2010. Disponível em: <https://static.scielo.org/scielobooks/w9q43/pdf/spink-9788579820465.pdf>. Acesso em: 22 out. 2019.

TORNQUIST, Carmen Susana. Armadilhas da nova era: natureza e maternidade no ideário da humanização do parto. Revista de Estudos Feministas, Florianópolis, v. 10, n. 2, 2002.