Associação da Rede Unida, Encontro Sudeste 2019

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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DIÁRIO CARTOGRÁFICO DAS MÃES QUE PERDEM SUAS FILHAS E FILHOS PELAS MÃOS DO ESTADO: paisagens que se repetem
Adriana Fernandes Carajá, Alzira de Oliveira Jorge

Última alteração: 2019-10-28

Resumo


Adriana Fernandes Carajá - Enfermeira e Mestre em Promoção da Saúde e Prevenção da Violência pela UFMG. E-mail: drifernandes26@yahoo.com.br

Alzira de Oliveira Jorge - Médica e Professora da Faculdade Medicina da UFMG. E-mail: alziraojorge@gmail.com

Introdução: A violação dos direitos de mulheres e suas crianças, sobretudo o seqüestro de filhos de suas mães, acompanham a trajetória da humanidade, evidenciando raízes históricas de opressão e marginalização. No Brasil esse fenômeno tem seus primeiros registros datados no século XVI, momento em que as mulheres indígenas foram abusadas e escravizadas pelos colonizadores europeus. Nesse período histórico, as crianças indígenas ainda em desenvolvimento, eram levadas para serem vendidas por valores consideráveis para servirem no futuro como escravos de seus senhores. As crianças que eram sequestradas tinham seus nomes alterados e ocultados e com o avançar da idade acabavam esquecendo sua língua materna, seus nomes ‘originários’ e seus familiares. Essa não era uma prática exclusivamente realizada contra as mães indígenas. Posteriormente, com a vinda dos escravos negros ao Brasil, por meio de grandes navegações no século XVII (Brasil Escravocrata), as mulheres negras, escravas e suas crianças passaram a ser alvo de tais situações.No século XX a política de controle da hanseníase no Brasil se pautou pelo isolamento e internação compulsória de pessoas diagnosticadas com a doença em antigos Hospitais Colônias, o que acarretou  separações e segregação de crianças em Instituições Totais. Fato é que essa história não ficou no passado e nos últimos anos o Poder Público tem determinado compulsoriamente a retirada das filhas e filhos das mães em situação de vulnerabilidade, através da emissão de atos, documentos e decisões, seja do Ministério Público, seja por parte do Poder Judiciário, baseado em uma suposta alegação de riscos para as crianças. Em Belo Horizonte essa prática institucional de abrigamento compulsório de bebês de mulheres empobrecidas ou consideradas em situação de vulnerabilidade ganhou visibilidade quando oficializou-se essas praticas por meio de instrumentos legais, a partir de 2014. E o aprofundamento da separação entre a mãe e o bebê passou a ser praticada, o que provocou questionamentos acerca da sua legitimidade e legalidade, impulsionando movimentos de resistências. Da mesma forma, as mulheres indígenas não estão fora desse contexto e, no Mato Grosso do Sul, estima-se que 60% das crianças institucionalizadas, em abrigos diversos, são indígenas. A retirada dos filhos das mulheres indígenas por determinações da Vara da Infância e Juventude de Dourados e de outros municípios mato-grossenses, ocorre desde antes de 2005, e já foi questionada por meio de relatórios da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), que em certos momentos agiu de forma silenciosa, mas em outros a sociedade manifestou-se contra. A partir destas expropriações surgem importantes movimentos de lutas, a saber: em relação às mães que foram acometidas pela hanseníase, o Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (MORHAN); em relação às Mães Órfãs usuárias de álcool, outras drogas e/em trajetória de rua de Belo Horizonte, o movimento “De quem é esse bebê?”; e das mães Guarani e Kaiowá do Mato Grosso do Sul, a Grande Assembléia das Mulheres Kuñangue Aty Guasu.Objetivos:Por compreender que há semelhanças e especificidades entre os processos que levam a retirada de bebês de mães em situação de vulnerabilidade social, este trabalho buscou mostrar as similaridades e as singularidades entre as situações de mães cujos bebês são retirados pelas mãos do Poder Público, em diferentes momentos históricos e em variados territórios; buscando uma compreensão mais ampliada sobre esse fenômeno, pretendeu-se conhecer, através de narrativas de atores, os efeitos e conseqüências dessa política em relação aos Direitos Humanos. Além dissobuscou-se refletir sobre as narrativas de alguns atores sobre o processo de destituição forçada do Poder Familiar e ainda demonstrar percepções e afetações. Abordagem metodológica: Trata-se de pesquisa qualitativa do tipo interferência que vem sendo desenvolvida pelo Observatório Nacional de Políticas Públicas e Cuidado, recorrendo a uma caixa de ferramentas, para elaboração do referencial teórico e de um diário cartográfico, para registro das experiências de campo. Foram analisados trechos das narrativas de diversas pessoas: três mães com história de hanseníase, uma mãe usuária de drogas ilícitas e em trajetória de rua, uma trabalhadora do Consultório de Rua e de duas mulheres da Grande Assembleia das Mulheres Guarani e Kaiowá. As narrativas propiciaram a compreensão sobre as diversas formas de violência que se abateram sobre essas pessoas, apontando para a luta contra a não perpetuação dessas violações. Após essa análise foram produzidos mapas para destacar as semelhanças e as singularidades entre as paisagens.Discussão/resultados: A pesquisa revelou que o sequestro de crianças é um crime histórico orquestrado por pessoas, instituições e, sobretudo pelo Estado, que tem por objetivo controlar determinadas populações apartadas socialmente através de critérios como cor, raça, gênero e classe, podendo ocorrer em qualquer lugar e espaço ideologicoou grupos vistos como ameaças. Aqueles que se consideram detentores do poder incomodam-se quando os marginalizados começam a se organizar, constituindo movimentos de resistência. A paisagem das mulheres atingidas pela hanseníase demonstrou amplamente como a presença de ideários higienistas, bem como a ausência de informação sobre uma doença pode marginalizar e promover a destruição dos vínculos familiares.Na paisagem das Mães Órfãs desvelam-se histórias de mulheres usuárias de álcool e outras drogas e/ou em trajetória de rua que demonstram uma segregação sociorracial que marca a vida dessas mulheres. As narrativas evidenciam os reflexos da escravidão no processo de desenvolvimento da sociedade, constatando que a população que se encontra em maior percentual é a negra, sendo a que mais sofre do racismo institucional e das mazelas do sistema judiciário, uma vez que esse Estado prefere “penalizar” essas mulheres, retirando suas crianças, do que atuar nos fatores que condicionam sua situação de vulnerabilidade, e ainda não procura tratar/cuidar do uso abusivo de álcool e outras drogas como um problema de saúde pública,. Já na terceira paisagem, fica patente o genocídio da população indígena orquestrado pelos conflitos agrários provocados pelos grandes latifundiários, que cobiçam as terras indígenas para expansão de seus negócios e ainda pela omissão estatal que se desresponsabilizae ignora a dívida histórica que possui com esses povos. Desse modo, as ideologias colonialistas ainda se encontram enraizadas na sociedade, manifestando a intencionalidade em extinguir a cultura dos Povos Indígenas, somado a um Judiciário etnocêntrico que, inspirado pelo discurso integracionista e assimilacionista, promove múltiplas violações, sendo uma delas a retirada de crianças de suas mães. A paisagem das singularidades, demonstraram que cada situação, exige atenção diferenciada, devido a toda diversidade cultural,  modos de vida, de impacto social, de saúde pública, de iniquidades e do campo judicial que cada uma delas representa. As histórias dessas mulheres apesar de serem diferenciadas em alguns pontos apresentam grandes similaridades, como o uso do corpo da mulher para perpetuar o poder por meio da retirada de suas filhas e filhos, sobretudo a partir da das instituições públicas;a padronização e idealização da figura materna; o sexismo, o racismo e o patriarcalismo, sendo esses últimos oriundos da colonização e da escravidão.Considerações finais: Ao final, registrou-se muitas similaridades entre as situações, pois o tema principal que atravessou essas paisagens foi o das violências e seus desdobramentos a que estas mulheres estão submetidas, visto que elas sofrem com as determinações do Poder Judiciário e pela execução de práticas biopolíticas que desejam domesticar seus corpos, controlar seus desejos, cercear sua liberdade e relações interpessoais. O desafio que se apresenta é o de superar a judicialização da vida em oposição à oferta do cuidado a estas mulherespropondo inovações para romper a cadeia de transmissão histórica da Guerra às Drogas, que pune e criminaliza, mulheres negras, pobres e indígenas em todo o mundo.Destacou-se que a visão reducionista vem gerando formas de exclusão ao propor medidas análogas para lidar com situações distintas, desconsiderando que a presença de especificidades que exige atenção diferenciada.Por fim, além de trazer visibilidade para esse importante fenômeno, apontou por meio de estudos identificadosos caminhos a serem trilhados para o enfrentamento dessas violências como, por exemplo, ofertar ações de educação permanente para os profissionais que atuam  diretamente na temática,em especial no que diz respeito à superação de ações discriminatórias e preconceituosas que podem criminalizar sujeitos sem considerar seus territórios e o que influencia suas vidas.Este trabalho abre espaço para novas formas de enfrentamento deste problema como: a defesa pelo fortalecimento da articulação entre os atores da Rede de Proteção da Criança e do Adolescente com as demais políticas; a construção de redes de apoio para estas mulheres em situação de vulnerabilidade; a sensibilização dos agentes públicos de de que a retirada de crianças e acolhimento em abrigos devem ser medidas de última instância, aplicadas apenas em casos extremos; a defesa e garantiade que mães e bebês tenham ampla convivência e fiquem juntos com dignidade, ou em casos que isso não seja possível, que o ECA seja devidamente aplicado deixando as crianças com a família extensa; assim comoa efetivação e criação de políticas públicas para o acesso e cuidado de forma diferenciada para as populações indígenas.

Palavras–chave: Mulheres. Vulnerabilidade Social. Violência.