Associação da Rede Unida, Encontro Sudeste 2019

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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Processos de resistência: sobre a prática de cuidados em uma Unidade de Acolhimento Adulto.
Thamiris dos Santos Gonçalves, Maria Paula cerqueira Gomes

Última alteração: 2019-10-28

Resumo


Durante muito tempo os tratamentos concebidos para a loucura, foram conflituosos e polêmicos. De forma frequente, marcados pela exclusão e cerceamento de direitos. Depois de intensos movimentos sociais e em defesa de políticas públicas tais como a Reforma Sanitária, que na época imprime uma nova configuração à Saúde Pública, inicia-se uma luta histórica para a transformação do paradigma da assistência ao tratamento dos indivíduos com transtorno mental, conhecido como reforma psiquiátrica.

Essa reformulação envolveu diversos atores,como, profissionais de saúde, gestores públicos das instâncias federal, estadual e municipal; pacientes/usuários; familiares e membros da sociedade civil. Esse movimento, como já dito acima, iniciado em finais da década de 80 do século passado, tem seu grau de institucionalidade máxima como a aprovação da Lei 10.216, vigente no país a partir 2001. Para a sustentação dessa Política, o Ministério da Saúde cria um conjunto de instrumentos jurídicos e normativos, que possibilita a criação de uma rede de saúde mental diversificada em substituição aos modelos hospitalocêntricos: os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), a atenção básica, as residências terapêuticas, os ambulatórios, os centros de convivência e os clubes de lazer, entre outros (BRASIL, 2004).

Diante dessa nova realidade social proposta pela Reforma Psiquiátrica, não apenas a saúde pública e a estruturação dos serviços são modificados, a relação com a loucura também, haja visto que o usuário antes mantido isolado, ou até mesmo abandonado em um hospital psiquiátrico,agora passa a circular pelas cidades e, como preconiza a Reforma, faz uso de dispositivos comunitários,como praças, centros de convivência, associações e outros, que antes eram comuns apenas aos ditos ‘normais’.

No decorrer de todos esse processos de mudança no paradigma do cuidado em Saúde Mental, com a chegada de novos dispositivos, cabe registrar que uma parte da população também em sofrimento psíquico pelo uso abusivo de drogas ficou por muito tempo excluída e ausente na historia de cuidados no campo da Saúde Pública, apontando para a necessária revisão do modelo assistencial (BRASIL, 2003).

Sendo assim, emerge a necessidade da implantação de Políticas Públicas comprometidas com a promoção, prevenção e tratamento, na perspectiva da integração social e da produção de autonomia a essas pessoas. A Política Nacional sobre Drogas constitui-se como uma das ações programáticas estratégicas da política de saúde mental, englobando as diferentes modalidades de Centros de Atenção Psicossocial como o CAPS ad enquanto um dos serviços centrais na organização da rede substitutiva de cuidados aos usuários de álcool e outras drogas. (BRASIL, 2003).

Por meio de múltiplos impasses e disputas acerca dos modelos de cuidado, é implantada a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) que estabelece os critérios de organização e implementação em todo o país, integrando a saúde mental em todos os níveis e pontos de atenção no Sistema único de Saúde (SUS). A Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) é composta pela atenção básica, atenção psicossocial, atenção de urgência e emergência, atenção residencial de caráter transitório, atenção hospitalar em hospitais gerais, estratégias de desinstitucionalização e reabilitação psicossocial.

Nesse conjunto complexo de dispositivos de saúde e por meio da “Política do Ministério da Saúde para Atenção Integral a Usuários de Álcool e outras Drogas” que o Ministério da Saúde assume de forma mais veemente a “necessidade de superar o atraso histórico de assunção desta responsabilidade pelo SUS”, reafirmando “que o uso de álcool e outras drogas é um grave problema de saúde pública” (BRASIL, 2003).As ações de cuidado durante um período da história foram invisibilizados aos usuários de álcool, crack e outras drogas, o aumento no número de serviços é uma resposta objetiva a um problema de enorme complexidade, dispositivos surgem no horizonte de cuidado a este público, como é o caso da Unidade de Acolhimento Adulto (UAA). Amparada na portaria do Ministério da Saúde N º 121 de 2012, a UAA é um serviço da Rede de Atenção Psicossocial que oferece acolhimento transitório às pessoas de ambos os sexos, com necessidades decorrentes do uso de álcool e outras drogas (BRASIL,2012, art.2o). Segundo o Relatório de Gestão 2011-2015 do ministério da saúde, as Unidades de Acolhimento (UA) foram concebidas a partir da necessidade de ampliação de recursos territoriais e comunitários. Nesse sentido, as Unidades de Acolhimento se configuram como residências e podem ser categorizadas em duas modalidades: Adulto e Infantojuvenil.

É imersa nesses dispositivos de cuidado para a Atenção Integral a Usuários de Álcool e outras Drogas que inicio meu percurso profissional. Ao me deparar com o trabalho em uma Unidade de Acolhimento Adulto, a primeira questão que surge é: e agora? Chegar neste dispositivo, três meses após sua implementação, trouxe muitos questionamentos sobre o seu lugar na rede de cuidados, começo a perceber que se faz fundamental aprofundar os estudos sobre a política de Atenção Integral aos Usuários de Álcool e outras Drogas, sobre o cotidiano nas Unidades de Acolhimento, e, principalmente, sobre os impactos deste serviço na Rede de Atenção Psicossocial.

A Unidade de Acolhimento constitui um “recurso do Projeto terapêutico singular (PTS), de acordo com as necessidades dos usuários em seus contextos sócio-relacionais, considerando em particular, o “habitar” como um dos eixos centrais nos processos de reabilitação psicossocial. Visam à promoção de autonomia, de participação nas trocas sociais, de ampliação do poder de contratualidade social e de acesso e exercício de direitos das pessoas com a experiência do sofrimento psíquico, incluindo aquelas com necessidades decorrentes do uso de álcool e outras drogas (ASSIS, J.T; BARREIROS, C.A. et al apud BRASIL,2013b; 996 et al).

No atual cenário político, as precarizações dos serviços públicos, tal como o desmonte do Sistema Único de Saúde (SUS), se faz cada vez mais presente. Especificamente no campo da Saúde Mental, as Unidades de Acolhimento, assim como toda a Rede de Atenção Psicossocial, vêm enfrentando grandes desafios, incluindo o desafio de existir. As novas portarias desejadas por outra instâncias, as quais mesmo durante todo esse tempo de luta e processo de Reforma Psiquiátrica não foram “ atingidas”, são as mesmas que acham que lugar de louco é no hospício, que usar droga é falta de caráter ou que na verdade o que essas pessoas precisam é de medidas mais duras de controle, controle de vida, dos corpos, da possibilidade de viver, do ir e vir. Entretanto, seguimos avisados sobre a existência de muitas outras formas de cuidar, começando pela liberdade!.

Em meio a tantas mudanças, com diversas situações de crise, não só financeira em toda saúde, mas do anúncio do desmantelamento em marcha dos serviços. Em 2017 ocorreu um marco importante nesta Unidade: a não renovação do convênio, responsável pela gestão da unidade e de outros dois dispositivos. Em meio ao Caos e com a possibilidade de fechamento, se instalou no serviço um significativo movimento, iniciamos um projeto de divulgação sobre o que é esse serviço e a importância dele para a população, além de produzirmos um carta coletivamente, equipe e usuários e vídeos dos usuários dizendo sobre o cuidado ofertado pela UAA. Aconteceu também ocupações na Unidade, incluindo eventos junto a comunidade. Essa experiência foi fundamental para entendermos que a resistência só é possível quando construída coletivamente, e que precisamos resistir no cotidiano dos dispositivos a partir do encontro com cada usuário, que nos possibilite um novo olhar, diferentes formas de acolher e escutar. O usuário é parte fundamental deste processo.

Considerando esse contexto, seguimos enfrentando os desafios, atualmente uma das maiores problemáticas é o investimento estatal nas comunidades terapêuticas, que são consideradas, assim como as Unidades de Acolhimento, “modelo residenciais de caráter transitório”, porém com outra proposta de “cuidado”, visto que um dos principais pontos é o recurso financeiro e não o ponto de vista técnico e ético, segundo o Governo Federal mais de R$ 87 milhões estão assegurados ao novo projeto federal de acolhimento em comunidades terapêuticas, enquanto isso no Brasil, segundo publicação do Ministério da Saúde em 2017, existem 35 Unidades de Acolhimentos Adulto habilitadas (BRASIL, 2017). A falta de recurso financeiro é um marcador importante quanto a possibilidade de extinção das UAA, nessa perspectiva como resistir para que as Unidade de Acolhimento não deixem de existir?