Associação da Rede Unida, Encontro Sudeste 2019
v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Última alteração: 2019-10-29
Resumo
O contrário da vida não é a morte, mas o desencanto.
(Rufino e Simas, 2019)
Nos últimos anos temos assistido à um recrudecimento das políticas públicas de saúde no âmbito do sistema único de saúde, com o avanço e consolidação das práticas e políticas neoliberais: desta forma, os serviços de saúde organizam-se numa lógica gerencial e procedimento centrada, onde cada vez mais o modelo de atenção biomédico, normalizador e comportamental ganham espaço, capturando e instrumentalizando o encontro entre usuário e trabalhador na micropolitica do cuidado ( Merhy,2002,2003, 2009). Assim, de forma frequente esse encontro torna-se, homogeinazador, sem surpresas, promovendo a reificação dos corpos-subjetividade destituindo-os de reconhecimento ( Honneth, 2018; Mendonça,2009 ) .
Não há duvidas que em meio a essa intensa disputa por outros modelos de gestão e atenção muito se avançou na construção das redes de atenção psicossocial. No entanto, esse aumento de cobertura e diversificação das redes de cuidado por si só não garantem a produção de um cuidado vivo, em liberdade, centrado nos sujeitos. Em meio a essas disputas a supervisão clínico-institucional em saúde mental, surge, em meados da década de 90, como uma “aposta-dispositivo” capaz de abrir um espaço, poroso, crítico reflexivo entre e com as equipes sobre o que fazem, o que pensam que fazem e que dizem que fazem nesse encontro com os sujeitos e suas histórias. Uma aposta que passado duas décadas, nem sempre a supervisão clínico institucional conseguiu operar nessa direção, muitas vezes não se abrindo para a complexidade do que emergia do campo ou insistindo em produzir um movimento semelhante ao que vinha desconstruir, qual seja: a atualização de prescrição de condutas e regimes de verdade sobre as equipes e os que delas demandam cuidado.
Um dos operadores técnico-conceituais centrais das práticas na rede de atenção psicossocial constitui-se pela "tomada de responsabilidade sobre o território" , o que implicaria aos serviços um constante estado de atenção e prontidão , frente ao movimento e transformações no território, seja da ordem dos dados epidemiológicos e indicadores de saúde, seja por meio das mutações sócio políticas, econômicas, ambientais e subjetivas. Colocar-se atento ao território exigiria estar atento ao entrecruzamentos de várias linhas: de fuga, de abolição, de libertação , de aprisionamento, de violências, do mercado, etc, um posicionar-se na encruzilhada dos acontecimentos, da produção da vida.
Concomitante ao avanço e sofisticação das lógicas neoliberais no mundo do cuidado e do trabalho em saúde, que investem massiçamente nos processos de subjetivação, capitalizando-os ao máximo, outras formas de dessubjetivação ganham corpo e potência afirmando e reconhecendo a diferença : de corpos, de modos de existência , de desejar, e de viver, num processo de descolonização cognitiva e experencial. Falamos aqui dos processos de racialização do socius, do questionamento das identidades de gênero, do movimento de mulheres nas suas diversas interseccionalidades, das novas masculinidades femininas, linhas e produções minoritárias que se revoltam contra as práticas que estruturam , modulam e sustentam os processos capitalísticos. Tal diagrama de forças convoca e tensiona a produção de saberes não hegemônicos, provisórios, descolonizados , uma verdadeira pedagogia política das encruzilhadas. Tal empreitada pedagógico-política se lança como “uma ação de encantamento e responsabilidade com a vida frente às violências operadas pelo racismo/ colonialismo” ( Rufino, 2019); pelo encarceramento e criminalização das subjetividades que interessam, mas em sua expressão silenciada ,de forma periférica ao capital e ao mercado.
A luta por outras educações, formações , linguagens, gramáticas e encontros é uma luta pela vida ( Rufino,2019). Uma prática formativa e pedagógica das encruzilhadas, não se contenta com a mera inversão de papéis, de revanchismo ou de repolarização dos lugares de poder: seja ele colonizado x colonizador; trabalhador x usuário;coletivo x indivíduo; verticalização x horizontalização. Segundo Rufino (2019, pg 75) : "A prática das encruzilhadas como um ato descolonial não mira a subversão ( supervisão ? , inclusão nossa!) , a mera troca de posições, mas sim a transgressão . Assim, responde eticamente a todos os envolvidos nessa trama, os envolve, os encanta , os cruza e os lança a outros caminhos enquanto possibilidades para o tratamento da tragédia chamada colonialismo".
Posto isto, coloca-se uma pergunta: Como engendrar uma pedagogia das encruzilhadas frente ao cotidiano das redes de cuidado? Como operar um cuidado descolonizado, coletivo , mas heterogêneo, atento e encantado com a vida , num contexto de extrema fragilização e de intenso sofrimento tanto para profissionais de saúde como para os usuários do SUS? Como produzir outras palavras e enunciados ao que tecnicamente se instituiu denominar –se como supervisão clínico-institucional?
Referências Bibliográficas
MERHY, E E. Saúde: a cartografia do trabalho vivo. São Paulo: Hucitec, 2002
MERHY, E. E. et al. O trabalho em saúde: olhando e experenciando o SUS no cotidiano. São Paulo: Editora Hucitec, 2003.
MERHY, E. E., FEUERWERKER, L.C.M. Novo olhar sobre as tecnologias de saúde: uma necessidade contemporânea. In MANDARINO, A.C.S e GOMBERG, E.(org) Novas tecnologias e saúde. Salvador: EdUFBa, 2009.
RUFINO, L, Pedagogia das Encruzilhadas, RJ, Mórula Editorial, 2019.
SIMAS, LA E RUFINO, L, Flecha no Tempo, RJ, Mórula Editorial, 2019.