Associação da Rede Unida, Encontro Sudeste 2019

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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Formando médicos como pesquisadores a partir da experiência com redes vivas   Forming physician as researchers from the experience of living networks Formando médicos como pesquisadores a partir de la experiencia con redes vivas
Daniel Emílio da Silva Almeida, Helvo Slomp Junior, Kathleen Cruz, Karla Coelho, Leandro Goncalvez, Emerson Merhy, Maria Paula Cerqueira Gomes

Última alteração: 2019-10-30

Resumo




Palavras chave: Redes Vivas, Formação em Saúde, Cuidado em Saúde



Introdução

Os processos formativos são um espaço de grande discussão e de práticas muito diversificadas no cotidiano das Instituições de Ensino Superior (IES) públicas. Há o desafio cotidiano, calcado nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a formação médica (BRASIL, 2014), de que as IES formem profissionais de saúde voltados à perspectiva de que a saúde integral é um direito social, assim como se oriente a partir de necessidades do Sistema Único de Saúde (SUS), trazendo o retorno de seus investimentos de forma responsável ao interesse público brasileiro.

No momento atual, não podemos deixar de marcar que a própria existência das IES Públicas estão em jogo, em um processo de corte constante de recursos, em disputa acirrada diária frente a políticas públicas verticalizadas e autoritárias, que visam mudar toda a sua estrutura com base em uma visão capitalística visceral, desconsiderando iniquidades e demandas reais e cotidianas da população brasileira.

Frente a este cenário, quais práticas poderíamos ofertar de modo a trazer visibilidade a modos de existir, resistir, e produzir cuidado e vida nos espaços em que atuamos, formando e ao mesmo tempo problematizando as políticas públicas de saúde?

O Plano Pedagógico do Curso (PPC) de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro, com sede no município de Macaé, estado do Rio de Janeiro, é orientado pela missão definida para o curso, a saber: formar profissionais médicos, qualificados dos pontos de vista técnico-científico, ético e humanista, capazes de gerar e disseminar conhecimentos científicos e práticas que expressem efetivo compromisso com a melhoria do atendimento às necessidades de saúde da sociedade brasileira, e, aptos a contribuir para o desenvolvimento de elevados padrões de excelência no exercício da medicina.

A partir desta questão e orientação do PCC, trazemos algumas experiências formativas da Universidade Federal do Rio de Janeiro - Campus Macaé, das disciplinas de Saúde da Comunidade, nos três períodos iniciais dos graduandos em Medicina.

No curso de Medicina três disciplinas são ofertadas a partir de um enfoque de docentes vinculados a Saúde Coletiva, e cada uma tem uma propostas respectivamente: a Saúde da Comunidade 1 parte do conhecimento do território, a 2 das Redes de Atenção e a 3 da Produção do Cuidado em Saúde.

Calcadas na ideia de que os processos formativos devem ser direcionados a partir das necessidades de saúde do território, os docentes conformaram a experiência dos campos, a partir de equipamentos das próprias redes de serviços de saúde públicos do município de Macaé/RJ. Sendo que, para visibilizar as necessidades de saúde relacionadas ao campo de práticas, várias ferramentas se propõe a colocar em análise os processos de cuidado em permanente disputa no cotidiano dos serviços, tendo como eixo central um processo formativo fortemente calcado nas experiências e in-mundização dos próprios graduandos do curso de Medicina (Larossa Bondía, 2002; Abrahão et al., 2017).

Descrevemos abaixo uma das modelagens em constante aperfeiçoamento e processamento coletivo, entre docentes e graduandos, ofertadas em uma das disciplinas vinculada à área de Saúde Coletiva.

O processo formativo disparado por um Observatório de Redes Vivas - um serviço de Urgência e Emergência hospitalar como Observatório da Rede



Especificamente em uma das disciplinas (Saúde da Comunidade 2), que acontece no 2o. período do curso, os docentes do curso de medicina vêm ofertando um processo de formação que se baseia em um envolvimento intensivo com o cotidiano do processo de cuidado em um dos principais equipamentos nos serviços de saúde das redes da região do Norte Fluminense, que no entanto recebe também usuários da região da Baixada Litorânea, um Hospital Público que oferece a principal porta de Urgência e Emergência regional de alta complexidade.

Tal construção se dá a partir da ideia de que tal equipamento, justamente por se mostrar como uma referência importante para as redes de saúde regionais, se coloca como um espaço privilegiado na condição de Observatório da produção do cuidado nas Redes de Atenção de Saúde locais.

Inicialmente, a ideia é que os graduandos se envolvam nos processos de trabalho que se dão neste equipamento por suas diferentes entradas, que se dão desde espaços mais clássicos na perspectiva da formação médica (sala de hipodermia-medicação, consultórios médicos, espaços de recepção e acolhimentos com classificação de risco) quanto outros, usualmente colocados em segundo plano, mas fontes de um enriquecimento importante no processo de formação, trazendo visibilidades outras (recepção, acompanhamento de “maqueiro”, como é chamado o profissional que faz o transporte de macas e cadeiras de rodas, serviço social, acompanhamento do médico regulador, entre outros).

A experiência em cada espaço de cuidado segue ganhando forma, as fontes das quais bebemos se multiplicam, e o processo ganha corpo, a partir do qual, a partir de ruídos e processamentos regulares nos faz caminhar mais um passo: seguir um usuário-cidadão por um dia (plantão com o usuário), pelos fluxos por dentro deste grande equipamento. E todas essas experiências vão  sendo registradas pelos alunos em diários de campo cartográficos.

Aos seguirmos o usuário(a) algo acontece, e as vidas ganham maior materialidade. A usuária que fura a fila, repreendida, conta mais sobre a sua história, e seu processo terminal e solitário do cuidado de câncer. Outra usuária que “fura” o fluxo instituído, e vem de um município não previsto na pactuação regional, conta a todos o seu processo de acionamento de equipamentos, um a um, na labuta de costurar como pode seu processo de cuidado.

As redes passam a aparecer com maior proeminência, e passam a ser invadidas pelas próprias vidas dos usuário(a)s e, por que não dizer, pelas vidas dos próprios alunos-investigadores e seus professores, pois tudo o que acontece também já aconteceu ou pode acontecer com todos nós, na perspectiva cartográfica. A partir deste material temos um substrato para seguirmos na confecção conjunta da disciplina. O “campo” não se mostra totalmente predeterminado, e se abre e se conforma, a partir das afecções que invadem os próprios graduando(a)s.

Uma temática para problematização do processo de envolvimento com os serviços de saúde então é construída de forma coletiva e a partir das demandas dos graduandos, e a partir desta pactuação, todo o processo pedagógico se discorre: novos campos de prática são pactuados, as temáticas trabalhadas em sala passam a ser utilizadas de uma maneira diferente, em prol da constituição de um trabalho de campo e coletivo que coloca em análise as experiências vividas.

As ofertas teóricas da disciplina são acionadas a todo momento, mas cada equipe é levada, obedecendo a metodologia da problematização, a novas revisões bibliográficas que respondem aos problemas colocados pela experiência (Larossa Bondía, 2002).

Tal modelagem, entremeada com aulas do tipo exposição dialogada, é acompanhada por todo o semestre pelos docentes, que trabalham como tutores das respectivas equipes, e com processamento semanal e regular de experiências, ferramentas, e do processo formativo. Duplo papel, professores e tutores, ou um pouco de cada coisa o tempo todo.

Processo pedagógico disparado e em mistura com o SUS, inmundicizado nele, recolhendo experiências e fazendo uso de construções teóricas como ferramentas, uma usina de fabricação de ferramentas, para além de uma estratégia unicamente conteudista. Temos observado que as produções, para além de uma proposta formativa, vem se mostrando também como alguma oferta de retorno para os próprios serviços de saúde e, por que não dizer, para os próprios professores, cujo aprendizado permanente é intenso.



Considerações finais

Os docentes, em uma construção contínua frente a processamentos coletivos e espaços de auto-avaliação com graduandos, vêm experimentando modelagens diferenciadas na formação em medicina em uma universidade pública. Processo formativo que se calca em um forte processo problematizador, que dialoga de forma intensiva com processos de Educação Permanente em Saúde.

A aposta é a de que a formação não seja subsumida a uma dimensão conteudista, mas que, dialogando com esta, faça ao mesmo tempo uso de afecções em campo como matéria-prima privilegiada para o ensino. As redes vivas de conexões existenciais e a abertura ao envolvimento com a vida dos usuários, a in-mundização com o SUS, longe de se mostrar como um entrave frente aos desafios atuais e flagrantes no campo das políticas sociais, se mostra como campo de grande riqueza. Temos a ofertar para discussão estas experiências de formação-resistência neste espaço, ainda em invenção.



Referências:

Abrahão AL, Merhy EE, Cerqueira Gomes MP, Tallemberg, Chagas MS, Rocha M, Santos NLP, Silva E, Vianna L O pesquisador in-mundo e o processo de produção de outras formas de investigação em saúde. Merhy EE, Baduy RS, Seixas CT, Almeida DES, Slomp Junior H (Orgs.). Avaliação compartilhada do cuidado em saúde: surpreendendo o instituído nas redes. 1 ed. Rio de Janeiro: Hexis, v. 1, 2017, p. 22-30.

BONDIA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Rev. Bras. Educ.,  Rio de Janeiro , n. 19, p. 20-28, Apr. 2002 . Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-24782002000100003&lng=en&nrm=iso>. access on  25 Oct. 2019. http://dx.doi.org/10.1590/S1413-24782002000100003.

BRASIL. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Câmara de educação Superior. Resolução CNE/CES nº 3 de 20 de junho de 2014. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina e dá outras providências. Diário Oficial da União. Brasília, 23 jun. 2014; Seção 1, p. 8-11.

Freire, P. Pedagogia do Oprimido, 17a edição, Rio de Janeiro. Editora Paz e Terra, 1987.

Macaé/RJ. Universidade Federal do Rio de Janeiro - Campus Macaé. Curso de Medicina de Macaé. Disciplina de Saúde da Comunidade II. Manual do Aluno. 2019 (mimeo)

Macaé/RJ. Universidade Federal do Rio de Janeiro - Campus Macaé. Curso de Medicina de Macaé.Plano Pedagógico do Curso. Manual do Aluno. 2009 (mimeo)

Moebus, Ricardo Narciso; Merhy, Emerson Elias; Silva, Erminia. O usuário-cidadão como guia. Como pode a onda elevar-se acima da montanha. In: Merhy EE, Baduy RS, Seixas CT, Almeida DES, Slomp Junior H (Orgs.). Avaliação compartilhada do cuidado em saúde: surpreendendo o instituído nas redes. 1 ed. Rio de Janeiro: Hexis, v. 1, 2017, p. 43-55.

Participação Social e Equidade - SES-RJ: Ações Integradas. Disponível em: <http://saudeparticipativarj.blogspot.com/p/normal-0-21-false-false-false-pt-br-x.html>. Acesso em: 23 out. 2019.