Associação da Rede Unida, 13º Congresso Internacional Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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EXPERIENCIAS DO PROCESSO DE RECOVERY NO COTIDIANO DE USUÁRIOS E PROFISSIONAIS DO CENTRO DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL II (CAPS II)
Ana Kalliny Sousa Severo, Daniuma Sousa Silva, Antônio Vladimir Félix Silva

Última alteração: 2018-01-25

Resumo


Apresentação: A reforma psiquiátrica busca gerar mudanças na participação de usuários e familiares na produção e gestão do cuidado. Recusando a ideia de doença e de tratamento verticalizado, a experiência de usuários e familiares em torno do sofrimento e do cuidado se torna essencial na produção de mudanças nos serviços de saúde mental. Nesse sentido, surge o recovery, como tentativa de instituir novas práticas e modos de cuidado neste campo. Deste modo, objetivamos nesse trabalho mapear experiências de recovery no cotidiano de usuários e familiares do CAPS II.

Desenvolvimento do trabalho: Trata-se de uma pesquisa de caráter qualitativo, com método na pesquisa-interventiva, na perspectiva da Análise Institucional, que visa desvelar as relações instituídas e instituintes, além da autogestão e autoanálise dos coletivos. O campo de pesquisa foi o Centro de Atenção Psicossocial II (CAPS II) da cidade de Parnaíba, Piauí. Participaram da pesquisa usuários, familiares e trabalhadores do serviço. Foram realizados oito encontros grupais usando diversas práticas grupais, tais como a tenda do conto, dinâmicas e rodas de conversas, acerca da experiência de viver com o sofrimento psíquico grave, que foram registrados em diários de pesquisa.

Resultados: Para análise dos dados, foram selecionadas quatro situações analisadoras acerca do recovery, tais como: A experiência de crise como produtora de conhecimento; gênero e saúde mental; CAPS: tutela e cuidado; e a loucura e a cidade.

A) A experiência de crise como produtora de conhecimento. Nesse sentido, o autoconhecimento em torno da crise das usuárias participantes surge como estratégias pautadas nos pressupostos do recovery, no qual pode ser visto como um movimento instituinte, partindo de uma ruptura da concepção de cuidado instituída pelos parâmetros psiquiátricos para um processo de auto-cuidado reconstruído por meio da experiência vivida. O conhecimento em torno crise, já é por si só, um processo potencialmente criativo.

B) Gênero e saúde mental. Na experiência das usuárias, percebemos o incômodo perante situações sociais que afirmam associação entre loucura e “falta de homem”. Isso nos mostra que socialmente é posto ao ser mulher a necessidade de exercer uma atividade amorosa, desde que seja, “recatada e do lar”, isso é, sem esbanjar tanto sua sexualidade. Vejamos que ao mesmo tempo que a “insanidade”, está relacionada pela falta do exercício de uma atividade amorosa, a mesma também pode ser justificada por uma posição sexualmente ativa da mulher.

C) CAPS: tutela e cuidado. Além da questão de gênero, a experiência da usuária Dália (nome fictício) e de outros usuários também são atravessadas pela lógica da tutela do serviço. Essa usuária mora com a mãe e trabalha como doméstica, além de vender lanche. Frequenta o CAPS três vezes por semana, mas sempre deixa de ir quando encontra serviços extras. Também relata a cobrança por parte dos profissionais, do serviço em relação a suas faltas. O CAPS, apesar de ser pensado como uma estratégia substitutiva de cuidado em saúde mental, ainda reproduz discursos e práticas pautadas no modelo asilar, tutelando aos usuários e assegurando a permanência destes no serviço. O posicionamento de Dalia em reaver seus laços com a comunidade, quer por meio do trabalho, ou por outras vias, é pouco exercitado por outros usuários, de modo que boa parte ainda possui uma rede de apoio muito pequena, que se resume ao serviço e o ambiente familiar. A abordagem em recovery encarrega o usuário de seu processo, de modo que, as estratégias de cuidados deixam de ser predominantemente do profissional e passa a ser do usuário, ou seja, o profissional assume o papel de auxílio ou de mediador do processo, o que tem sido difícil de ser compreendido pelos profissionais. Em contrapartida, de um estabelecimento que tutela, o CAPS também assume o lugar de promoção de cuidado e esperança para aqueles que o procuram. Alguns familiares, com os quais tivemos contato, vivenciaram tanto o modelo asilar como o modelo psicossocial, fica evidente, em alguns relatos o quanto o serviço CAPS possibilita melhores condições de tratamentos tanto para os usuários como para os cuidadores.

D) A loucura e a cidade

Art. VI. Fica permitido passe livre para percorrer a direção apontada pelo seu coração. (ÂNCORA, 2011)

Pensando no conhecimento existencial dos usuários, Hortência usuária do serviço (nome fictício), traz em sua narrativa as dificuldades enfrentadas quanto ao acesso aos dispositivos comunitários, como por exemplo o uso do transporte público. No qual foi constado pela maioria dos usuários a melhora na assistência dos serviços de saúde mental (no caso de quem já havia vivenciado os dois momentos da história) e a conquista de direito, como o ato de ter voz. Embora Hortência concorde com seus colegas, a mesma reconhece a necessidade de melhorar os serviços, pois ainda lhes são negados direitos garantidos por lei, em vista o preconceito e o estigma criado em torno do transtorno mental. O sentido do conceito de recovery tem como intuito, pensar em um processo, contínuo engloba sentimento de esperança, empoderamento, capacidade de lidar com sintomas e outras adversidades que possam aparecer ao longo do processo. Nesse relato, o empoderamento surge como elemento que viabiliza a participação do usuário na prática profissional, no processo de mediação de reinserção do usuário na comunidade, de modo a exercer sua cidadania, sem ser julgado ou privado de seus direitos. As rodas de conversas com usuários sobre suas dificuldades do dia-a-dia trazem consigo relatos, que incidem diretamente em posturas de reflexão-ação de nossas práticas. O usuário anteriormente que ocupava um lugar de agente passivo no modelo asilar, agora é reconhecido e se reconhece como protagonista de seu processo.

Considerações finais:

Percebemos alguns usuários que possuem uma outra compreensão sobre o diagnóstico, assumindo posições que contrariam o discurso biomédico tradicional, num processo de subjetivação de práticas de cuidados não somente da condição do transtorno em si, mas do efeito de ser um paciente psiquiátrico. O recovery, como processo natural captado pelas falas dos usuários e familiares, é percebido como estratégia que ganhou forma ao longo do tempo, demandando muito trabalho sobre os sentimentos. Porém, fica nítido que essas pessoas, não têm tanta consciência desses processos, o que é justificável, pelo fato de ser uma vertente ainda muito nova no Brasil, cabendo a nós ampliar esses conteúdos, fortalecendo o protagonismo dos usuários e familiares do CAPS II. Apesar da literatura trazer o recovery como um processo voltado para os usuários de saúde mental, este trabalho também insere os familiares enquanto pessoas que, consideravelmente, também se apresentam como indivíduos que se adaptaram criativamente diante do sofrimento psíquico de seus entes, mobilizando estratégias de cuidado para o outro e para si. Foi possível perceber alguns relatos sem tanta dor, culpa ou sensação de fracasso, e que encontraram no crochê, na leitura, na dança, ou ainda em práticas religiosas o alívio e força para o ato de cuidar. Outro aspecto relevante é o trabalho compartilhado entre familiares e serviço, onde é percebido a compreensão sobre a importância de participar do processo terapêutico de seus usuários. O recovery pode ser visto aqui como o campo que amplia e reafirma a união entre os familiares, usuários e profissionais.


Palavras-chave


Saúde mental; recovery; empoderamento