Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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Ossos de vidro – das vulnerabilidades à possibilidade de cuidado
Luis Gustavo Freitas Castro, Maria Júlia Martins Padovani, Paulo Vitor de Castro Vieira, Luis Flávio Araújo de Oliveira, Eduardo Ferreira Arbache, Jéssica Bruna Borges Pereira, Mariana Hasse

Última alteração: 2021-12-16

Resumo


Apresentação: O conceito de vulnerabilidade está relacionado à suscetibilidade de pessoas, grupos, comunidades e/ou regiões fragilizadas jurídica ou politicamente a determinados adoecimentos e agravos e que necessitam de auxílio e proteção para a garantia de seus direitos como cidadãos. Para o entendimento da vulnerabilidade de alguém, articulam-se dimensões individuais, sociais e programáticas (relacionada à disponibilidade e qualidade de políticas públicas específicas). Esse trabalho é o relato da experiência de estudantes de Medicina ao se depararem com uma paciente (que vamos chamar de Sara) e suas vulnerabilidades no cotidiano hospitalar. Desenvolvimento da experiência: Durante a aula de Semiologia, a prática da entrevista médica foi proposta ao grupo de estudantes pelo preceptor do hospital-escola. O objetivo da atividade era desenvolver habilidades de comunicação através de uma conversa com um paciente adulto internado na enfermaria da Clínica Médica, sobre a história da doença atual e de outras contraídas ao longo da vida, histórico e questões familiares, estilo de vida e sintomas antigos e atuais. Propositalmente sem maiores informações sobre o caso, ao adentrar o quarto, os estudantes encontraram o que parecia ser uma criança. Impactados, essa primeira impressão determinou o ritmo das perguntas iniciais, que foram dirigidas à mãe de Sara, que a acompanhava na hora desse encontro. Porém, as respostas, com fala lúcida e consciente, vieram da paciente. Portadora de Osteogênese Imperfeita tipo III, doença popularmente conhecida como “ossos de vidro”, Sara tem uma condição genética que gera deficiência na produção de colágeno, o que acarreta osteoporose severa e uma estrutura corporal infantilizada. Por isso, apesar de já ter mais de 20 anos, ela se parecia com uma criança, já sofreu mais de 128 fraturas ósseas e tem dificuldades locomotoras. Além da doença e suas consequências físicas, no decorrer da conversa/anamnese, Sara relatou aspectos de sua vida que sinalizaram diversas outras vulnerabilidades – individuais, sociais e programáticas, dimensões que se interrelacionam no cotidiano, se retroalimentando. Na primeira, foram identificadas dificuldade alimentar devido a fragilidade dentária – que ocasionou anemia -, impossibilidade da prática de esportes físicos/sedentarismo, limitações de locomoção e mobilidade e solidão, aspecto que chamou atenção dos estudantes. Sara relatou que, apesar de ter muitos parentes que vivem na sua cidade, tem pouco apoio familiar. Isso ocasiona um isolamento afetivo, que a paciente sente como ausência de solidariedade com sua condição. Nesse cenário, sua mãe é a única pessoa dedicada a ajudá-la, o que gera uma superproteção que atrapalha processos de socialização e de formação de uma consciência individual madura, caracterizada por sonhos, ambições e vontades. Ao perguntarem sobre seus planos e projetos, ela não demostrava interesse ou preocupação com a questão, gostava apenas de internet e jogos telefônicos, pois não havia incentivo por parte da mãe, nem modelos aos quais ela pudesse se inspirar para almejar um futuro melhor. Na dimensão social observaram-se vulnerabilidades relacionadas à formação educacional, pois Sara foi alfabetizada majoritariamente em casa, falta de participação política e contato social com outras pessoas de sua idade. Na dimensão programática identificou-se uma exposição à riscos à integridade e ao bem-estar físico de Sara devido à falta de preparo dos profissionais para lidar com seu caso. Ela e sua mãe contam sobre a dificuldade de conseguir atendimento adequado nos níveis primários e secundários de saúde. A fragilidade corporal de Sara exige uma manipulação cuidadosa e específica, que, muitas vezes, não ocorre. Assim, ao buscar ajuda para imobilizar lesões, Sara acabava com mais ossos fraturados e, por isso, sua mãe passou a cuidar dos machucados em casa, procurando o tratamento institucional (hospitalar no caso) apenas em nos casos extremos. Impactos: Vários foram os impactos dessa experiência para o grupo de estudantes, com destaque para o modo como a jovem aborda sua condição, sob uma perspectiva bem-humorada e sem vitimização excessiva. Ao longo da anamnese, Sara fazia brincadeiras e abordava suas dificuldades de modo natural e até mesmo descomprometido, o que nos permitiu entender que a perspectiva individual da paciente tem um papel fundamental para mitigar os impactos da enfermidade em sua vida. Isso é comovente na medida em que, apesar das dificuldades individuais, sociais e programáticas que encontra, ela busca formas de se desenvolver cognitiva e socialmente. Com isso, podemos olhar para o paciente sob uma ótica humanizada, um ser com peculiaridades e vontades que precisam ser estimuladas. No que tange ao domínio do estudo da Medicina, esse caso permitiu uma profunda reflexão acerca da relação médico-paciente, pois explicitou como um quadro delicado como esse afeta não apenas a saúde física do paciente, mas também seu bem-estar como um todo. Isso deixou clara a necessidade de uma formação profissional que leve em conta, para além dos aspectos técnicos e fisiológicos, os relacionais e éticos para garantir um cuidado integral. O conceito de vulnerabilidade permitiu compreender a complexidade das dificuldades vividas pela paciente e suas interfaces com os determinantes sociais dos processos de saúde, adoecimento e cuidado. Ademais, esse caso demostra a carência de preparo da comunidade médica em geral para lidar com situações atípicas, em que é fundamental adaptar o conhecimento técnico e acadêmico às necessidades de demandas que surgem. Nesse sentido, processos de formação e educação permanente de profissionais que recebem casos como o de Sara são importantes para evitar iatrogenias e mitigar os danos gerados pelo atendimento. Por fim, o uso de uma abordagem centrada na pessoa para a realização da anamnese contribuiu para uma entrevista eficiente e respeitosa, promovendo conforto e conexões empáticas. Assim, como futuros médicos, percebeu-se que uma relação médico-paciente salutar é primordial para a promoção de um cuidado integral e acompanhamento de qualidade. Considerações finais: A experiência possibilitou a compreensão de que a função de um profissional da saúde é promover a integralidade de acesso a políticas públicas. Esse processo não é simples pois, ainda que haja vontade e disposição do paciente em se desenvolver plenamente, os direitos são cerceados por questões familiares, sociais e de infraestrutura. O trabalho em equipe, o acionamento de redes intersetoriais e o estabelecimento de relações dialógicos com os pacientes e suas redes de apoio são fundamentais para a construção de processos de cuidado humanizados e com potência de transformar efetivamente a realidade das pessoas que buscam por ajuda.