Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida
v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Última alteração: 2021-12-16
Resumo
Apresentação: O conceito de vulnerabilidade está relacionado à suscetibilidade de pessoas, grupos, comunidades e/ou regiões fragilizadas jurídica ou politicamente a determinados adoecimentos e agravos e que necessitam de auxílio e proteção para a garantia de seus direitos como cidadãos. Para o entendimento da vulnerabilidade de alguém, articulam-se dimensões individuais, sociais e programáticas (relacionada à disponibilidade e qualidade de políticas públicas específicas). Esse trabalho é o relato da experiência de estudantes de Medicina ao se depararem com uma paciente (que vamos chamar de Sara) e suas vulnerabilidades no cotidiano hospitalar. Desenvolvimento da experiência: Durante a aula de Semiologia, a prática da entrevista médica foi proposta ao grupo de estudantes pelo preceptor do hospital-escola. O objetivo da atividade era desenvolver habilidades de comunicação através de uma conversa com um paciente adulto internado na enfermaria da Clínica Médica, sobre a história da doença atual e de outras contraídas ao longo da vida, histórico e questões familiares, estilo de vida e sintomas antigos e atuais. Propositalmente sem maiores informações sobre o caso, ao adentrar o quarto, os estudantes encontraram o que parecia ser uma criança. Impactados, essa primeira impressão determinou o ritmo das perguntas iniciais, que foram dirigidas à mãe de Sara, que a acompanhava na hora desse encontro. Porém, as respostas, com fala lúcida e consciente, vieram da paciente. Portadora de Osteogênese Imperfeita tipo III, doença popularmente conhecida como “ossos de vidro”, Sara tem uma condição genética que gera deficiência na produção de colágeno, o que acarreta osteoporose severa e uma estrutura corporal infantilizada. Por isso, apesar de já ter mais de 20 anos, ela se parecia com uma criança, já sofreu mais de 128 fraturas ósseas e tem dificuldades locomotoras. Além da doença e suas consequências físicas, no decorrer da conversa/anamnese, Sara relatou aspectos de sua vida que sinalizaram diversas outras vulnerabilidades – individuais, sociais e programáticas, dimensões que se interrelacionam no cotidiano, se retroalimentando. Na primeira, foram identificadas dificuldade alimentar devido a fragilidade dentária – que ocasionou anemia -, impossibilidade da prática de esportes físicos/sedentarismo, limitações de locomoção e mobilidade e solidão, aspecto que chamou atenção dos estudantes. Sara relatou que, apesar de ter muitos parentes que vivem na sua cidade, tem pouco apoio familiar. Isso ocasiona um isolamento afetivo, que a paciente sente como ausência de solidariedade com sua condição. Nesse cenário, sua mãe é a única pessoa dedicada a ajudá-la, o que gera uma superproteção que atrapalha processos de socialização e de formação de uma consciência individual madura, caracterizada por sonhos, ambições e vontades. Ao perguntarem sobre seus planos e projetos, ela não demostrava interesse ou preocupação com a questão, gostava apenas de internet e jogos telefônicos, pois não havia incentivo por parte da mãe, nem modelos aos quais ela pudesse se inspirar para almejar um futuro melhor. Na dimensão social observaram-se vulnerabilidades relacionadas à formação educacional, pois Sara foi alfabetizada majoritariamente em casa, falta de participação política e contato social com outras pessoas de sua idade. Na dimensão programática identificou-se uma exposição à riscos à integridade e ao bem-estar físico de Sara devido à falta de preparo dos profissionais para lidar com seu caso. Ela e sua mãe contam sobre a dificuldade de conseguir atendimento adequado nos níveis primários e secundários de saúde. A fragilidade corporal de Sara exige uma manipulação cuidadosa e específica, que, muitas vezes, não ocorre. Assim, ao buscar ajuda para imobilizar lesões, Sara acabava com mais ossos fraturados e, por isso, sua mãe passou a cuidar dos machucados em casa, procurando o tratamento institucional (hospitalar no caso) apenas em nos casos extremos. Impactos: Vários foram os impactos dessa experiência para o grupo de estudantes, com destaque para o modo como a jovem aborda sua condição, sob uma perspectiva bem-humorada e sem vitimização excessiva. Ao longo da anamnese, Sara fazia brincadeiras e abordava suas dificuldades de modo natural e até mesmo descomprometido, o que nos permitiu entender que a perspectiva individual da paciente tem um papel fundamental para mitigar os impactos da enfermidade em sua vida. Isso é comovente na medida em que, apesar das dificuldades individuais, sociais e programáticas que encontra, ela busca formas de se desenvolver cognitiva e socialmente. Com isso, podemos olhar para o paciente sob uma ótica humanizada, um ser com peculiaridades e vontades que precisam ser estimuladas. No que tange ao domínio do estudo da Medicina, esse caso permitiu uma profunda reflexão acerca da relação médico-paciente, pois explicitou como um quadro delicado como esse afeta não apenas a saúde física do paciente, mas também seu bem-estar como um todo. Isso deixou clara a necessidade de uma formação profissional que leve em conta, para além dos aspectos técnicos e fisiológicos, os relacionais e éticos para garantir um cuidado integral. O conceito de vulnerabilidade permitiu compreender a complexidade das dificuldades vividas pela paciente e suas interfaces com os determinantes sociais dos processos de saúde, adoecimento e cuidado. Ademais, esse caso demostra a carência de preparo da comunidade médica em geral para lidar com situações atípicas, em que é fundamental adaptar o conhecimento técnico e acadêmico às necessidades de demandas que surgem. Nesse sentido, processos de formação e educação permanente de profissionais que recebem casos como o de Sara são importantes para evitar iatrogenias e mitigar os danos gerados pelo atendimento. Por fim, o uso de uma abordagem centrada na pessoa para a realização da anamnese contribuiu para uma entrevista eficiente e respeitosa, promovendo conforto e conexões empáticas. Assim, como futuros médicos, percebeu-se que uma relação médico-paciente salutar é primordial para a promoção de um cuidado integral e acompanhamento de qualidade. Considerações finais: A experiência possibilitou a compreensão de que a função de um profissional da saúde é promover a integralidade de acesso a políticas públicas. Esse processo não é simples pois, ainda que haja vontade e disposição do paciente em se desenvolver plenamente, os direitos são cerceados por questões familiares, sociais e de infraestrutura. O trabalho em equipe, o acionamento de redes intersetoriais e o estabelecimento de relações dialógicos com os pacientes e suas redes de apoio são fundamentais para a construção de processos de cuidado humanizados e com potência de transformar efetivamente a realidade das pessoas que buscam por ajuda.