Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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“E o homem não me define, minha casa não me define, minha carne não me define”: a construção da feminilidade pela psiquiatria
Juliane Silva da Cruz, Cristal Moniz de Aragão, Luan Limoeiro Hermogenes do Amaral, Bruna Pereira Ramos, Beatriz Fernandes de Souza, Maria Gabriela Mariano Machado, Ana Beatriz de Oliveira Rabello Duarte, Luana Papelbaum Micmacher, Luisa Biasoli de Mello Rezende

Última alteração: 2022-02-24

Resumo


Se nos propomos a falar sobre a história dos manicômios, precisamos fazê-lo sob um olhar que traga as bases do feminismo anticolonial, racializado, que tenha a classe em seu centro e apoie-se, sobretudo, numa perspectiva antimanicomial para pensar seu projeto político. É apenas diante disto que poderemos fazer ecoar as vozes e afetos que surgem de localidades e territórios múltiplos.

É observando mulheres pretas, periféricas, que exercem o maternar, LGBTQIA+, idosas, loucas, militantes e aguerridas, insurgentes e contrapostas ao patriarcalismo — estas que, principalmente, colocam-se como sujeitas ativas de suas histórias — que montaremos as encruzilhadas possíveis para um feminismo antimanicomial.

Temos, então, a reprodução e circunscrição de papéis sociais que condensam o ser mulher e o ser homem, amparados em teorizações difundidas não somente pela hegemonia psiquiátrica, mas pelas próprias mãos que executam as estruturas racistas e machistas. Para tanto, as diferenciações binárias entre homens e mulheres eram concepções de cunho simples: para a mulher, a docilidade, a passividade, a fragilidade e a maternidade; para o homem, a virilidade, a masculinidade em ascensão, a gerência financeira e a vida pública.

A sombra feminina sustentada pelo advento psiquiátrico nas décadas finais do século XIX, era, portanto, a da perversão, da lascividade, da desordem e da loucura. Estes definiam as instituições, caminhos e formas pelas quais o corpo feminino deveria moldar-se. Não havia possibilidade de mostrar-se outra; não havia possibilidade de tornar-se outra; não havia possibilidade de expandir a unicidade subjetiva e escapar às mãos patriarcais.

Dessa forma, o corpo feminino diverso e místico, territorializado e fincado na história esteve sempre sendo observado por olhares prisionais e mortificantes. Olhares estes que propuseram a inferioridade da mulher em oposição homem, a inveja do pênis, a menstruação como estado crítico do viver, a impossibilidade gravídica como doença psiquiátrica, o lesbianismo enquanto enfermidade a ser corrigida, a mulher preta como a raivosa a ser controlada pelos grilhões da psiquiatria. Parte daí, portanto, a intervenção biologicista, psiquiátrica e, sobretudo, eugenista reservada para mulher que ousasse diferenciar-se do todo, daquilo que lhe era instituído como forma de viver e sobreviver sob um modelo panóptico de tutelagem.

Amparados nisto, evocamos a pontual e indispensável necessidade de racializar e generificar todo e qualquer debate que esteja envolto nas bases do saber médico-psiquiátrico. Isto porque a psiquiatria como dispositivo institucional e instituinte, esmagadoramente branco, patriarcal e homogeneizado irá, por muitas razões, reproduzir estruturalmente o racismo, a violência de gênero e o classismo que inauguraram as formas do agir e do fazer manicomial.

De tal modo, temos que a institucionalidade é mais do que reprodutora e aplicadora das formas inúmeras de violação de corpos; é ela quem, inclusive, torna-se engrenagem que faz girar as rodas que mantêm o aprisionamento e o isolamento social dos corpos pretos, femininos e periféricos que, assim como os corpos loucos, mancham os sujeitos sociais que caminham entre a moralidade e a ética.

Dessa maneira, construir um espaço territorial para a habitação do sujeito louco, nada mais é do que, com o advento asilar e o isolamento, fazer-lhe explodir a loucura com o exclusivo objetivo não de chegar à gênese psicossomática ou psicopatológica do que caracterizava sua irrupção, mas para utilizar-se desta mesma irrupção para a criação de um sistema classificatório que originaria a diferença entre o normal e o patológico.

Não podemos desconsiderar o agenciamento político das máquinas do capital, pois a experiência da psiquiatria não se constrói ou se faz sozinha. Isto, tampouco, significa que ela não foi também objeto captor de desejos, territórios e sujeitos. Significa, principalmente, que as revoluções ocasionadas pela ascensão neoliberal ofereceram-na aquilo que a faz imperar no social e no institucional: poder. Poder para prender. Poder para governar sobre a loucura. Poder para decidir. Poder para operar as rodas da morte.

Marcamos, então, a localidade da Luta Antimanicomial como ponto-chave de partida e criação de possibilidades outras, olhares outros, lutas outras e novos fazeres. Fazeres estes que ecoam a voz de muitas, que dão rosto, que territorializam de uma nova forma, que instituem um movimento político e organizado por mulheres em seu front de luta. Todavia, é urgente que observemos sua existência através de um olhar descolonizado e que tenha como seu norte a radicalidade das encruzilhadas. Estas que não se curvam ao neoliberalismo ou ao desígnio que desterritorializa as subjetividades em prol de uma máquina capitalista que se faz mortificante e essencialmente esquizofrênica. Estas que fazem-se para além do reformismo psiquiátrico e apoiam-se na finitude de todo e qualquer manicômio, sendo ele físico ou subjetivo.

Utilizamos como objeto e objetivo da antimanicomialidade que extrapola muros a convivência em sua amplitude. O fazemos por acreditar que é nos Centros de Convivência, dispositivos da Atenção Primária à Saúde e ligados à Rede de Atenção Psicossocial,  que encontramos os radicais necessários para fazer eclodir uma política emancipatória, autônoma — que não vem da vivência solo, mas da vivência não exclusivamente dependente —, feminista, pedadogicamente freireana, compartilhada, construída por muitas vezes e andarilha nas encruzilhadas inúmeras que a vida apresenta-nos. O fazemos por acreditar que os Centros de Convivência são um dos dispositivos que compõem a luta pelo fim dos manicômios, à inserção da loucura no todo, à ocupação das ruas sem tutela ou pudor.

Assim, o recorte aqui descrito, baseado em parte de uma monografia apresentada à conclusão de graduação em Psicologia da UFRJ, debruça-se no objetivo de fazer com que a pesquisa torne-se caminho para um feminismo antimanicomial, anticolonial e lotado das muitas possibilidades do fazer. Utiliza, portanto, a revisão bibliográfica de livros, artigos e teses de dissertação como aparato de escrita; a cartografia psicossocial como intervenção-metodológica para alcançar os territórios existenciais; as cosmogonias de Exu para elaborar a dimensão e grandiosidade das convivências e do anticolonialismo; e as bases teórico-práticas do feminismo decolonial para insurgir a multiplicidade de criação de uma categorização feminista antimanicomial.

Apresento, além disso, que a pesquisa intitulada não obtêm seus resultados finais, uma vez que esta deriva de uma monografia que encontra-se ainda em andamento e caminhando para seus passos de conclusão. De tal maneira, caracteriza-se o trabalho como sendo um relato de experiência estruturado, pensado e construído através de uma pesquisa que é feita por muitas mãos. Contudo, ainda que os resultados não nos saltem neste momento, espera-se que a mesma possa nos trazer luz para um tema de importância significativa e com poucos trabalhos sobre.