Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida
v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Última alteração: 2022-02-24
Resumo
Se nos propomos a falar sobre a história dos manicômios, precisamos fazê-lo sob um olhar que traga as bases do feminismo anticolonial, racializado, que tenha a classe em seu centro e apoie-se, sobretudo, numa perspectiva antimanicomial para pensar seu projeto político. É apenas diante disto que poderemos fazer ecoar as vozes e afetos que surgem de localidades e territórios múltiplos.
É observando mulheres pretas, periféricas, que exercem o maternar, LGBTQIA+, idosas, loucas, militantes e aguerridas, insurgentes e contrapostas ao patriarcalismo — estas que, principalmente, colocam-se como sujeitas ativas de suas histórias — que montaremos as encruzilhadas possíveis para um feminismo antimanicomial.
Temos, então, a reprodução e circunscrição de papéis sociais que condensam o ser mulher e o ser homem, amparados em teorizações difundidas não somente pela hegemonia psiquiátrica, mas pelas próprias mãos que executam as estruturas racistas e machistas. Para tanto, as diferenciações binárias entre homens e mulheres eram concepções de cunho simples: para a mulher, a docilidade, a passividade, a fragilidade e a maternidade; para o homem, a virilidade, a masculinidade em ascensão, a gerência financeira e a vida pública.
A sombra feminina sustentada pelo advento psiquiátrico nas décadas finais do século XIX, era, portanto, a da perversão, da lascividade, da desordem e da loucura. Estes definiam as instituições, caminhos e formas pelas quais o corpo feminino deveria moldar-se. Não havia possibilidade de mostrar-se outra; não havia possibilidade de tornar-se outra; não havia possibilidade de expandir a unicidade subjetiva e escapar às mãos patriarcais.
Dessa forma, o corpo feminino diverso e místico, territorializado e fincado na história esteve sempre sendo observado por olhares prisionais e mortificantes. Olhares estes que propuseram a inferioridade da mulher em oposição homem, a inveja do pênis, a menstruação como estado crítico do viver, a impossibilidade gravídica como doença psiquiátrica, o lesbianismo enquanto enfermidade a ser corrigida, a mulher preta como a raivosa a ser controlada pelos grilhões da psiquiatria. Parte daí, portanto, a intervenção biologicista, psiquiátrica e, sobretudo, eugenista reservada para mulher que ousasse diferenciar-se do todo, daquilo que lhe era instituído como forma de viver e sobreviver sob um modelo panóptico de tutelagem.
Amparados nisto, evocamos a pontual e indispensável necessidade de racializar e generificar todo e qualquer debate que esteja envolto nas bases do saber médico-psiquiátrico. Isto porque a psiquiatria como dispositivo institucional e instituinte, esmagadoramente branco, patriarcal e homogeneizado irá, por muitas razões, reproduzir estruturalmente o racismo, a violência de gênero e o classismo que inauguraram as formas do agir e do fazer manicomial.
De tal modo, temos que a institucionalidade é mais do que reprodutora e aplicadora das formas inúmeras de violação de corpos; é ela quem, inclusive, torna-se engrenagem que faz girar as rodas que mantêm o aprisionamento e o isolamento social dos corpos pretos, femininos e periféricos que, assim como os corpos loucos, mancham os sujeitos sociais que caminham entre a moralidade e a ética.
Dessa maneira, construir um espaço territorial para a habitação do sujeito louco, nada mais é do que, com o advento asilar e o isolamento, fazer-lhe explodir a loucura com o exclusivo objetivo não de chegar à gênese psicossomática ou psicopatológica do que caracterizava sua irrupção, mas para utilizar-se desta mesma irrupção para a criação de um sistema classificatório que originaria a diferença entre o normal e o patológico.
Não podemos desconsiderar o agenciamento político das máquinas do capital, pois a experiência da psiquiatria não se constrói ou se faz sozinha. Isto, tampouco, significa que ela não foi também objeto captor de desejos, territórios e sujeitos. Significa, principalmente, que as revoluções ocasionadas pela ascensão neoliberal ofereceram-na aquilo que a faz imperar no social e no institucional: poder. Poder para prender. Poder para governar sobre a loucura. Poder para decidir. Poder para operar as rodas da morte.
Marcamos, então, a localidade da Luta Antimanicomial como ponto-chave de partida e criação de possibilidades outras, olhares outros, lutas outras e novos fazeres. Fazeres estes que ecoam a voz de muitas, que dão rosto, que territorializam de uma nova forma, que instituem um movimento político e organizado por mulheres em seu front de luta. Todavia, é urgente que observemos sua existência através de um olhar descolonizado e que tenha como seu norte a radicalidade das encruzilhadas. Estas que não se curvam ao neoliberalismo ou ao desígnio que desterritorializa as subjetividades em prol de uma máquina capitalista que se faz mortificante e essencialmente esquizofrênica. Estas que fazem-se para além do reformismo psiquiátrico e apoiam-se na finitude de todo e qualquer manicômio, sendo ele físico ou subjetivo.
Utilizamos como objeto e objetivo da antimanicomialidade que extrapola muros a convivência em sua amplitude. O fazemos por acreditar que é nos Centros de Convivência, dispositivos da Atenção Primária à Saúde e ligados à Rede de Atenção Psicossocial, que encontramos os radicais necessários para fazer eclodir uma política emancipatória, autônoma — que não vem da vivência solo, mas da vivência não exclusivamente dependente —, feminista, pedadogicamente freireana, compartilhada, construída por muitas vezes e andarilha nas encruzilhadas inúmeras que a vida apresenta-nos. O fazemos por acreditar que os Centros de Convivência são um dos dispositivos que compõem a luta pelo fim dos manicômios, à inserção da loucura no todo, à ocupação das ruas sem tutela ou pudor.
Assim, o recorte aqui descrito, baseado em parte de uma monografia apresentada à conclusão de graduação em Psicologia da UFRJ, debruça-se no objetivo de fazer com que a pesquisa torne-se caminho para um feminismo antimanicomial, anticolonial e lotado das muitas possibilidades do fazer. Utiliza, portanto, a revisão bibliográfica de livros, artigos e teses de dissertação como aparato de escrita; a cartografia psicossocial como intervenção-metodológica para alcançar os territórios existenciais; as cosmogonias de Exu para elaborar a dimensão e grandiosidade das convivências e do anticolonialismo; e as bases teórico-práticas do feminismo decolonial para insurgir a multiplicidade de criação de uma categorização feminista antimanicomial.
Apresento, além disso, que a pesquisa intitulada não obtêm seus resultados finais, uma vez que esta deriva de uma monografia que encontra-se ainda em andamento e caminhando para seus passos de conclusão. De tal maneira, caracteriza-se o trabalho como sendo um relato de experiência estruturado, pensado e construído através de uma pesquisa que é feita por muitas mãos. Contudo, ainda que os resultados não nos saltem neste momento, espera-se que a mesma possa nos trazer luz para um tema de importância significativa e com poucos trabalhos sobre.