Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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ASSISTÊNCIA ALIMENTAR NO CONTEXTO DE PESSOAS EM SITUAÇÃO DE RUA NO BRASIL
Carolina Corbeceiri, Gabriel da Conceição Veiga, Kathleen Tereza da Cruz

Última alteração: 2022-02-06

Resumo


Palavras-chave: Assitência Alimentar, Pessoas em Situação de Rua, Fome.     

Introdução

A rua pode ser um lugar de encontros, passagens, locomoções; contudo, para muitos, ela consubstancia local de permanência, moradia. Conforme Patrus Ananias, é quando a rua vira significado de falta de opção, perda da dignidade, perda da esperança e, expressão doída da exclusão: lugar da invisibilidade. A terminologia Pessoas em Situações de Rua configura-se como genérica para abordar este complexo fenômeno, e frequentemente é  realizada a distinção das formas de permanência na rua, subdividindo entre as que ficam, as que estão e as que são da rua. Assim, este trabalho utilizou a definição sugerida pelo MDS: “Um grupo heterogêneo, que tem em comum a extrema pobreza, vínculos familiares fragilizados ou rompidos, a vivência de um processo de desfiliação social decorrente da ausência de trabalho assalariado e que assume a rua como espaço de moradia e sustento”.


Objetivo

Refletir sobre a assistência alimentar de indivíduos em situação de rua e os corolários deste contexto. MétodosFoi desenvolvido um relato de experiência a partir de análises, debates e entrevistas desenvolvidas nos encontros do Grupo Tutorial sobre Saúde da População em Situação de Rua,  realizadas por docentes e discentes do  segundo período da graduação em Medicina na Universidade Federal do Rio de Janeiro - campus Macaé, sob a  modalidade ensino remoto emergencial, como parte da disciplina Saúde da Comunidade II. Durante os encontros virtuais, o grupo realizou leitura de artigos, debates  sobre políticas públicas voltadas às pessoas em situação de rua no Brasil, e entrevistas com profissionais da saúde que atuam nos acolhimento e atendimento desse grupo, permitindo a formatação de uma abordagem multidisciplinar sobre a perspectiva de cuidado a essa população, por meio da compreensão de suas vulnerabilidades e, portanto, do entendimento de suas demandas e necessidades.

Resultados e discussão

Consoante Charles Darwin, um dos mecanismos fundamentais à seleção natural é a busca por sobrevivência através da luta pelo alimento. Assim, a incapacidade de obter a alimentação adequada se relacionaria às idiossincrasias limitantes do próprio ambiente. Portanto, a fome seria uma imposição ambiental, e o animal homem seria passivo, sofrendo com as intempéries e condições desfavoráveis. Todavia, com a constituição de sociedades mecânicas e, posteriormente, orgânicas, ocorreu a tecnificação da vida pela instrumentalização da natureza, permitindo que o ser humano driblasse adversidades climáticas, fazendo-se ativo, organizando o ambiente para promover a coesão do corpo social, garantindo a continuidade da espécie. Logo, o ato de se alimentar, na espécie humana, adquire um caráter imperioso frente à simples determinação ecológica.  Entretanto, durante o século XIX, com a intensificação das relações exploratórias trabalhistas e da lógica acumulativa do capital, a fome passou a ser, paradoxalmente, naturalizada, em meio a um contexto de grandes transformações paisagísticas e de avanços científicos; na perspectiva de aceitação de desigualdades, ocorre marginalização daqueles considerados sem produtividade e, portanto, ‘’sem valor’’.  Assim, é possível inferir que a fome e as diversas doenças causadas pela desnutrição foram, e são,  negligenciadas até a contemporaneidade, pois o preconceito, a visão mercadológica e a falta de esclarecimento estão arraigadas em parcela significativa do corpo social mundial, reverberando no contexto brasileiro. Assim, a fome manifesta-se como fato cotidiano para milhões; conquanto a Constituição de 1988 assegure o direito às moradia, cidadania, alimentação, esses cidadãos têm seus direitos inalienáveis menosprezados e desrespeitados hodiernamente, em uma árdua jornada pela subsistência. Logo, pode-se dizer que a rotina dessa população gira em torno de dois eixos :  a busca por meios de sobrevivência, sobretudo por alimentos e locais seguros para o descanso; e a procura por trabalho formal ou informal para subsistir. Assim, entre a população não abrigada, há o surgimento de diversas estratégias na tentativa de conquistar alimento. Dentre estas, há maior destaque para: recebimento de doações (instituições de caridade, particulares ou restaurantes), que, nem sempre, disponibilizam os recursos alimentícios nas condições adequadas de consumo;  permanência próxima de locais que facilitem o acesso à comida, seja ela por recebimento ou por coleta direta em ruas, lixões e/ou outros locais insalubres; e busca pelo restaurante popular (embora nem sempre essa população disponha de recursos suficientes para comprar esta refeição). Conquanto existam estratégias para tentar obter o ‘’pão de cada dia’’, muitos relataram ter passado fome, especialmente quando  recém chegados à situação de rua, ou por não dispor de recursos para se deslocar até onde poderiam conseguir alimento. Assim, os depoimentos abaixo, extraídos de um artigo que analisa a perspectiva da população em situação de rua em Salvador, Bahia, explicita, através da abordagem micro, o macro e hediondo cenário da insegurança alimentar enfrentada por esse grupo no Brasil:                                    "Eu como pão do lixo, eu como o que eu acho no lixo, (...) não importa como 'teja'. (...) Hoje mesmo eu nem comi, eu vou comer coisa do lixo quando eu sair pra catar aí" (Entrevista com A., sexo feminino, 28/Ago/2009)."Cê tá com fome (...), alguém comeu ali, largou uma quentinha, um pouco de comida, cê num tá nem aí quem vai olhar assim, cê (...) come. Cê acha uma paradinha no chão, alguém pegou um pedaço e jogou, você come pra saber se vai fazer mal ou não ; (...) acaba sendo uma situação que tudo aquilo que você encontra na rua é alimento" (Entrevista com Z., sexo masculino, 02/Set/2009).

Ademais, é imperativo discorrer acerca da vilipendiação sofrida por esses indivíduos. Lamentavelmente, suas condições de vida, ou melhor, de sobrevivência, são extremamente precarizadas, marcadas por violências, HIV/AIDS, abuso de tóxicos psicoativos, insuficiente higiene corporal e bucal, transtornos psíquicos e doenças dermatológicas e gastrointestinais. Estas últimas são corolários, direta ou indiretamente, da escassez de alimentos adequados para consumo, em conformidade com as normas de nutro vigilância da ANVISA. Logo, para não padecer e sucumbir pela fome, são ingeridas substâncias impróprias para serem designadas como refeição,embora sejam, frequentemente, o único ‘’prato’’ disponível. Outrossim, o preconceito, a opressão e a vilipendiação sofridos por essa parcela da população caracterizam-se, também, como grandes entraves à sua alimentação, contribuindo para a perpetuação dos estigmas e, assim, para a hodiernidade do contexto de fome. Em entrevista realizada no Grupo Tutorial, R., ex-moradora de rua e mãe de L., relatou que seus filhos foram retirados de sua guarda pelo Estado; atualmente residindo em um abrigo, afirma que moradores de locais próximos ao mesmo designam o lugar de ‘’lixão’’, objetivando descaracterizar a humanidade dos que ali estão.

Conclusão

Conquanto o Brasil seja um grande celeiro mundial, apresentando seu agronegócio como forte pilar econômico, sua população tem fome. Há mulheres, idosos, homens e crianças que padecem por alimento. Há fome de comida, de moradia digna, de respeito. Portanto, é fundamental  ampliar o projeto  ‘’Consultório na Rua’’ , assim como promover arrecadação alimentos, sendo imperioso cobrar das autoridades públicas mais que posicionamentos, mudanças estruturais na forma de ver, cuidar e promover saúde para essa população. Só assim, haverá novas formas de existir, acolher e viver para essa parcela tão negligenciada. Logo, cabe ao profissional da saúde ecoar o discurso final da entrevistada R. : ao afirmar que os vizinhos apelidaram o abrigo de ‘’lixão’’, ela afirma que ‘’do lixão, nascem flores’’. Que sejamos, pois, jardineiros, zelosos e atentos, plantemos sementes e cultivemos flores de tolerância, respeito e acolhimento aos cidadãos em situação de rua.